É, as atualizações deste blog continuam raras. Mea culpa! Porém uma notícia recente arrancou-me do meu imobilismo. O velho álbum Tintim no Congo* (Tintim na África na antiga edição brasileira da Record) foi alvo de uma virulenta crítica pela CRE (Comission for Racial Equality – Comissão pela Igualdade Racial do Reino Unido), instituição pública inglesa que combate a discriminação racial. O comunicado diz que a HQ contém “imagens e textos de horrendo preconceito racial” e que ela não deveria ser vendida e sim “ser exposta em um museu, com um grande cartaz dizendo ‘velho lixo racista'”. A CRE afirma que o comunicado foi emitido a pedido de um homem que vira o álbum à venda em uma livraria e teria ficado profundamente ofendido com ele.

Eu adquiri posteriormente essa edição britânica e ela vem com uma página de aviso sobre o conteúdo e é envolta por uma faixa vermelha com os mesmos avisos. Não é falta de aviso!

Capa do álbum que gerou toda a polêmica

O comunicado gerou dois resultados: A cadeia de livrarias onde estava sendo vendido o álbum em questão, Borders, o transferiu da seção infantil onde estava para a de material adulto e as vendas do álbum dispararam por todo o Reino Unido, subindo cerca de 3.800%!

Os Studios Hergé, donos dos direitos do personagem, responderam usando a argumentação tradicional, de que o álbum é um produto de seu tempo, que Hergé admitia ser fruto de sua mentalidade da época, mas o mantinha quase inalterado para servir como “testemunho de sua época”. Pierre Assouline, biógrafo de Hergé, também defendeu o álbum em seu blog no jornal Le Monde, com uma argumentação similar.

A polêmica envolvendo a HQ é bastante antiga. Ela foi a segunda aventura de Tintim, publicada entre 5 de junho de 1930 e 11 de junho de 1931 no semanário belga Le Petit Vingtième, de ideologia católica fortemente conservadora. Curiosamente, o autor Hergé não queria mandar seu personagem para uma aventura africana e sim para os EUA (o que faria na aventura seguinte), mas foi obrigado a isso pelo diretor do semanário, o abade Wallez, que desejava convencer os jovens leitores da validade da colonização belga do país africano.

Nunca tendo saído da Bélgica, Hergé procurou documentação para retratar o Congo. Porém, tal como no álbum anterior e no seguinte, suas fontes não foram particularmente boas, pois o resultado foi uma visão demasiado estereotipada da África. Hergé mais tarde admitiria que sua visão dos africanos fora influenciada pela crença corrente na época de que os negros eram como crianças ingênuas, que precisavam da “sabedoria” dos brancos. Esse paternalismo está por todo o álbum que, ao considerar os africanos como ingênuos, revela-se ele próprio fruto de uma visão bastante ingênua, que era a de Hergé na época.

Vale dizer que o álbum pode ser paternalista, mas não é realmente racista. Em nenhum momento o álbum (ou o personagem) demonstra ódio contra os nativos! Ele os mostra em geral como figuras simpáticas, ainda que algo dependentes de Tintim. O que, na verdade, não é muito diferente dos personagens dos outros álbuns da série, uma vez que Tintim, herói perfeito por natureza, tendia sempre a ajudar aqueles que encontrava pela frente. Se isso é uma visão racista, então Tintim é racista com todo o mundo que encontra!

A forma com que os negros são retratados, com as feições exageradas das caricaturas da época e falando um francês capenga, também é similar à forma como eles eram retratados nos quadrinhos daquele tempo. Por exemplo, nas primeiras tiras de jornal do Mickey, escritas pelo próprio Walt Disney, o famoso camundongo vai parar em uma ilha distante habitada por canibais que eram retratados da mesmíssima maneira. A única diferença é que Hergé nunca teve o mau gosto de retratar negros como canibais…

Por que Walt Disney não é chamado de racista?

Também vale notar que Hergé desenhava todos os seus personagens, independentemente da origem, de forma caricatural.

Na sua versão original em preto e branco, a HQ era sim fortemente colonialista. Mas em 1946, quando Hergé redesenhou a aventura para a nova versão a cores (que é a mais conhecida hoje em dia), ele retirou boa parte das referências coloniais. Porém não “pasteurizou” o álbum, mantendo o paternalismo e a violência contra os animais presentes na versão original.

Na versão original, Tintim mostra a seus alunos nativos sua “pátria”, a Bélgica. Na versão colorida, a cena foi “suavizada” para uma simples lição de aritmética.

Por sinal, essa violência contra animais presente por todo o álbum é muito mais chocante que o paternalismo de Tintim. Ou pelo menos o foi para mim quando li a HQ pela primeira vez na infância. Tintim mata indiscriminadamente macacos, elefantes e, em uma cena inspirada em um livro de André Maurois, toda uma manada de antílopes! A associações de defesa dos animais têm muito mais do que se queixar deste álbum do que as de combate ao racismo!

Tintim pratica tiro ao alvo com um crocodilo em uma das cenas menos violentas do álbum

Ele chega ao requinte de explodir um rinoceronte com dinamite! Sério! Isso foi demais para a editora Egmont, que publica o personagem na Escandinávia e no Reino Unido e pediu para Hergé fazer uma versão menos violenta do encontro com o animal, que está presente nas edições desses países (todas as de língua portuguesa até hoje mantiveram a cena original).

Tomado por um inexplicável furor terrorista, Tintim explode um pobre rinoceronte inocente, que nunca soube o que lhe atingiu!

Toda a polêmica que gira em torno do álbum há anos fez com que sua publicação em francês fosse interrompida em finais dos anos 50. Durante mais de 10 anos o álbum juntou-se ao então lendário Tintim no País dos Sovietes no limbo dos quadrinhos. Ironicamente, ele voltou a ser publicado por iniciativa de uma revista… Do próprio Congo** (já independente, na altura chamado Zaire)! Esta fez diversos elogios à obra em suas páginas no início dos anos 70, estimulando a republicação do álbum por todo o mundo.

Artesanato congolês inspirado em Tintim

Artesanato congolês inspirado em Tintim

Todo? Não! Uma pequena aldeia inglesa continuou resistindo! Os ingleses ainda rejeitaram uma edição britânica do álbum por muitos anos, até finalmente cederem em 1991 (!), curiosamente publicando um fac-símile da edição original em P&B do álbum, ainda com todo seu ranço colonialista intacto.

Capa da primeira edição inglesa, em P&B

Somente em 2005 a editora inglesa Egmont cedeu ao apelo dos fãs e aceitou publicar a edição colorida, que recebeu uma cautelosa introdução de autoria dos tradutores explicando o contexto do álbum para evitar polêmicas racistas. Infelizmente não parece ter resultado. Ainda assim, a primeira tiragem de 30 mil exemplares foi vendida rapidamente, mais uma vez confirmando o duradouro sucesso do personagem com o público!

Ironicamente, o ataque do CRE parece ter apenas aumentado ainda mais o interesse deste pelo álbum. Nos poucos dias passados desde a emissão do comunicado, a instituição recebeu críticas por todos os lados, enquanto o álbum foi defendido como um clássico da literatura que exprime o pensamento de sua época, por mais equivocado que fosse. O que é um tipo de valorização que Tintim nunca tivera antes em um país de língua inglesa! Os detratores da série podem ter conseguido então o que os esforços de décadas de Hergé e seus sucessores nunca conseguiram: Popularizar Tintim nos países anglo-saxônicos!

Uma crítica muito mais eficiente à história foi feita recentemente por Joann Sfar. No quinto álbum de sua famosa série O Gato do Rabino (editada no Brasil pela Jorge Zahar, atualmente no segundo volume), Jerusalém da África, Sfar inclui uma aparição relâmpago do jornalista belga, mostrado como um chatíssimo branco com mania de dar lições de moral para todas as pessoas que vê pela frente e atirar em todos os animais que se mexem. A hilária sequência é muito mais devastadora para essa aventura de Tintim do que a censura de uma instituição pública que acaba se revelando muito mais paternalista que a obra que pretende criticar.

* Convém mencionar que a Companhia das Letras, atual editora da série no Brasil, já anunciou que sua nova edição do álbum utilizará realmente o título Tintim no Congo, tradução literal do título original, ao invés da mais tradicional tradução brasileira Tintim na África, utilizada na antiga edição da Record. A história também já foi conhecida pelo título Tim-Tim em Angola quando de sua primeira publicação em língua portuguesa, na revista lusa O Papagaio, nos anos 30, que mostrava “Tim-Tim” como um repórter lusitano, apropriadamente visitando a então colônia portuguesa de Angola.

** Para desespero dos intelectuais europeus, este álbum em particular é de longe o mais popular e apreciado do personagem na própria África. Os africanos demonstrando possuir muito mais senso de humor que seus “defensores”…